O território como constituinte das práticas educativas em dor crônica

The territory as a constituent of educational practices in chronicles

Autores: Paulo Henrique de Oliveira Barroso, Célia Maria de Oliveira Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

Para citación de este artículo: de Oliveira Barroso, P.H.; de Oliveira, C.M:; (2021). O território como constituinte das práticas educativas em dor crônica. En Revista Masquedós N° 7, Año 7. Secretaría de Extensión UNICEN. Tandil, Argentina.

Recepción: 18/02/2022 Aceptación final: 20/04/2022

Resumo

Esse artigo traz reflexões sobre as maneiras pelas quais o indivíduo influencia o processo de educação popular; a construção do território a partir das inter-relações e as contribuições do diálogo interdisciplinar sobre a experiência de dor e sua terapêutica, a partir dos resultados de um projeto de extensão em dor crônica. Tem como propósito promover reflexões sobre territorialidade e educação social, com foco nas contribuições interdisciplinares advindas do diálogo entre esses campos de conhecimento e a educação em saúde em dor. A discussão se sustenta na proposta educativa de Paulo Freire.

Palavras-chaves: Dor crônica; Educação em saúde; Educação social; Paulo Freire; Educação Popular; Vulnerabilidade Social.

Abstract

This article brings reflections upon ways in which the individual influences the popular education process; the construction of the territory from the interrelationships and contributions from the interdisciplinary dialogue about the experience of pain and its treatment, based on the results of an extension project in chronic pain. Its purpose is to promote reflections on territoriality and social education, focusing on interdisciplinary contributions arising from the dialogue between these fields of knowledge and health education in pain. The discussion is based on Paulo Freire’s educational proposal.

Key words: Chronic Pain; Health Education; Social Education; Paulo Freire; Popular Education; Social Vulnerability.

Introdução

As práticas educativas desenvolvidas a partir de projetos de extensão se apresentam como propostas pedagógicas centradas na criticidade e na emancipação dos sujeitos, com vistas à mudança de comportamento e atitudes. No Brasil, a extensão universitária é definida como o processo educativo, cultural e científico que articula ensino e pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre universidade e sociedade. (FORPROEX, 2021) A relação entre o ensino e a extensão está vinculada ao processo de formação de pessoas e de geração de conhecimento, tendo o estudante como protagonista de sua formação.

Esse artigo tem como propósito promover reflexões sobre territorialidade e educação social, tendo como foco as contribuições interdisciplinares advindas do diálogo entre esses campos de conhecimento e a educação em saúde em dor. A discussão se sustenta na proposta educativa de Paulo Freire.

O pensamento de Paulo Freire tem contribuído de forma relevante para a construção de uma educação reflexiva, problematizadora e transformadora (MIRANDA, 2004.). A proposta de Freire ainda é contemporânea e inspira a teoria e a prática da educação. Estratégias terapêuticas inovadoras em saúde se aproximam do pensamento de Freire quando são construídas coletivamente e incluem educação solidária e dialógica, que articula saber, conhecimento, vivência, comunidade, escola e território. (MIRANDA, 2004.).

A palavra território deriva do vocábulo latino terra, correspondendo nesta língua a territorium. Embora não haja consenso sobre a origem etimológica, o que se propagou sobre território foi um duplo sentido, o território como materialidade e, aos sentimentos que o território inspira, como medo para quem dele é excluído e satisfação para quem dele usufrui ou com ele se identifica. (ANDRADE, 1998.).

O território pode ser entendido sob o aspecto: político, econômico e cultural ou simbólico. O território compreendido sob o aspecto político é um espaço delimitado e controlado, através do qual, na maioria das vezes, se exerce um determinado poder, não exclusivamente relacionado ao poder político do Estado.

O conceito econômico de território, menos difundido, enfatiza a dimensão espacial das relações econômicas. No conceito econômico, o território é visto como uma fonte de recursos e/ou incorporado no embate entre classes sociais e na relação capital-trabalho, como um produto da “divisão territorial” do trabalho. (HASBAERT, 2007. p.40)

Por fim, o conceito cultural ou simbólico-cultural de território prioriza a dimensão simbólica e mais subjetiva, em que o território é visto, sobretudo, como o produto da apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido. O território é o produto das relações construídas a partir das vivências de grupos sociais. (COSTA, 2009) É no território que se organizam as relações das pessoas entre si e com o trabalho, suas experiências de prazer e de dor. Enfim, é no território que se configura a vida.

O sujeito, nas experiências de educação emancipadoras, é o centro do processo educativo, se configurando como ator central para a construção do currículo, de territórios vividos. O território vivido é o eixo pelo qual outras categorias e noções espaciais são abordadas, de acordo com a concepção de educação preconizada por Paulo Freire.

A educação não se caracteriza apenas por práticas de ensino institucionalizadas como aquelas existentes nas escolas, mas abrange todos os processos de formação dos indivíduos, de maneira que toda troca de saberes constitui uma prática educativa e pode se desenvolver em variados ambientes sociais, escolares e não escolares. (BRANDÃO, 2007)

No intuito de pensar as práticas educativas em espaços não escolares, com especial atenção para o currículo como constituinte e constituidor dessas práticas, a Extensão se coloca em posição de destaque, permitindo a aproximação entre a instituição de educação formal e o espaço de vida do sujeito. Na amplitude do conceito de território, relacionado à produção de novos saberes acerca dos fenômenos educativos, apresenta-se o projeto de extensão “Compartilhando Saberes em Dor”, incorporado no debate sobre a construção da cidadania de indivíduos que vivenciam dor crônica.

Ao discutir sobre a construção da cidadania de indivíduos com dor crônica, torna-se essencial destacar que as incapacidades ligadas à vulnerabilidade, como a dor crônica, somam-se as infligidas pelos seres humanos, uns aos outros, na construção de relações de poder que conformam dominação, intimidação, manipulação. Neste contexto, o lugar social do sujeito qualifica a sua dor e determina a reação do outro em face a ela. Diante da vulnerabilidade dos sujeitos, intervenções construtivistas que envolvem a consideração do saber popular e a participação daqueles que vivem os problemas são estratégias para identificar e combater as diversas vulnerabilidades. (AYRES, 2002)

Neste sentido, reflexões apoiadas na proposta de Paulo Freire sobre as maneiras pelas quais o indivíduo influencia o processo de educação popular; a construção do território a partir das inter-relações e as contribuições do diálogo interdisciplinar sobre a experiência de dor e sua terapêutica, a partir de resultados de um projeto de extensão, são propostas neste artigo.

A proposta educativa na perspectiva do pensamento de Paulo Freire

Com base nos pressupostos da Educação Popular de Paulo Freire e nos pressupostos da Antropologia da saúde, desde 2014, o Departamento de Enfermagem Básica da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (ENB/UFMG) desenvolve o Projeto de Extensão “Compartilhando saberes em dor” voltado à educação e suporte a pessoas com dor crônica. Em abril de 2020, devido à pandemia, o modelo de atendimento foi reorganizado de forma online com a proposta “Dor crônica: compartilhando saberes em tempo de pandemia”. A equipe é composta por profissionais de saúde e de áreas correlatas, por acadêmicos de Enfermagem e de Terapia Ocupacional e é coordenada por uma docente do ENB/UFMG. Atualmente, 74 pessoas participam do projeto.

O projeto de extensão se apresenta como interdisciplinar, visando fazer emergir a voz dos indivíduos com dor crônica, e a partir de sua fala, compartilhar saberes entre as pessoas atendidas, profissionais e estudantes. Propõe o acolhimento, planejamento e realização de ações que promovam o alívio da dor e a melhora funcional dos indivíduos que sofrem dor crônica e a sua reinserção no seu meio social, em um processo libertador.

Neste sentido, o projeto se alinha ao modelo de educação libertadora proposto por Paulo Freire. A educação libertadora se realiza como “[...] um processo pelo qual o educador convida os educandos a reconhecer e desvelar a realidade, criticamente” (Freire, 1985, p. 125). Os participantes reconhecem e são reconhecidos como sujeitos de suas histórias; uma história construída a cada instante, cujo processo de reconhecimento se faz por meio da intersubjetividade e intercomunicação. Todos os participantes são protagonistas, sujeitos da educação; dialogam, problematizam para construir uma nova realidade libertadora.

O diálogo, em Paulo Freire, favorece o pensar crítico-problematizador das condições existenciais e implica uma práxis social na qual ação e reflexão estão dialeticamente constituídas. A liberdade para expressar ideias, junto com o outro, provoca a interação e a partilha de diferentes concepções que impulsionam um pensamento crítico-problematizador da realidade. Na perspectiva freireana, a palavra verdadeira está comprometida com a ação transformadora.

A participação dos sujeitos no projeto é sustentada pelo diálogo, “adorei a reunião. Tirei minhas dúvidas, compartilhei com o grupo o meu estado emocional e percebi que existem pessoas com o mesmo problema. Com esta descoberta tive apoio de todos; o que fez me sentir melhor” (Participante 1).

O envolvimento em atividades significativas, desenvolvidas no projeto, potencializa o indivíduo com dor crônica a estabelecer relações com outras pessoas e com a comunidade e encontrar propósitos para sua vida. A atividade “Desafio de talentos” desenvolvida no projeto estimulou a participação dos indivíduos em ocupações do dia-a-dia, significativas e que proporcionam satisfação. Na proposta freiriana de educação, as finalidades, os conteúdos, as ações estão articulados no intuito de promover a humanização, a libertação dos sujeitos. (MENEZES, SANTIAGO,2014.). Desta forma, o Projeto de Extensão “Compartilhando saberes em dor”, por meio de atividades, como o “Desafio de talentos”, possibilita espaços e oportunidades de participação ativa e transformadora para os indivíduos com dor crônica.

O projeto se estrutura na proposta de educação em saúde, para o desenvolvimento da consciência crítica dos indivíduos a respeito do seu meio social e de suas condições de vida e saúde, o compartilhamento de conhecimentos que derivam das experiências, além da potencialização de processos coletivos para organizar e concretizar ações de mudança. Pressupõe ainda uma perspectiva preventiva e de uma abordagem diretiva, ampliando-se na direção de uma práxis construtiva e transformadora, pautada no desenvolvimento do diálogo.(LEONELLO, 2008).

A ação transformadora é observada, por meio da melhora funcional dos indivíduos, sua reinserção no seu meio social e aderência ao autocuidado e às orientações
relacionadas com educação em saúde; além do seu envolvimento no projeto, como pode ser observado nos relatos: “Neste momento que nosso acesso à rede de saúde é limitado é de grande valia ter este grupo” (Participante 2 );

As falas dos sujeitos em dor mostram como o grupo, além de potencializar as capacidades do indivíduo, pode promover mudanças de comportamentos e atitudes direcionadas ao desenvolvimento da autonomia e ao enfrentamento da dor. O grupo tornou-se um espaço de acolhimento e assumiu sentidos além do terapêutico, tais como local de socialização, lazer e espaço de cuidado. O contato com outros participantes do grupo também foi um aspecto importante destacado nas falas dos indivíduos que sofrem dor. O suporte social e apoio mútuo oferecidos no grupo estimulam a maior socialização dos integrantes e, consequentemente, impactam positivamente a saúde e bem-estar do indivíduo com dor crônica.

A partir da prática dialógica, o indivíduo desenvolve suas potencialidades de comunicar, interagir, administrar e construir o seu conhecimento, melhorando sua capacidade de decisão, humanizando-se. (MENEZES, SANTIAGO, 2014) Para Paulo Freire, o diálogo é construção teórica, atitude e prática pedagógica. É relação objetividade-subjetividade, tem fundamento e conteúdo; portanto, é uma categoria teórica. Em outros termos, são condições para a prática do diálogo: escuta, silêncio, crença no outro e respeito. Alia-se a essas condições a esperança crítica, mobilizadora do diálogo. Portanto, fundamentam o diálogo: o amor, a tolerância, a humildade e a capacidade de escuta como conteúdo e atitude da prática educativa.

Além de um espaço terapêutico, o Projeto de Extensão “Compartilhando saberes em dor” proporciona aos indivíduos com dor crônica um momento de acolhimento intimamente ligado ao conceito de integralidade.

De acordo com os pressupostos de Freire, é importante assumir que os sujeitos são agentes da práxis curricular e ponto de partida das situações reais para problematizá-las e avançar na construção de um conhecimento crítico que contribua com uma educação comprometida com a democracia.

Neste contexto, o Projeto de Extensão “Compartilhando saberes em dor”, por meio do uso de ferramentas de tecnologia da informação e comunicação é uma estratégia de ensino-aprendizagem que permite aproximar a realidade dos jovens graduandos com a temática da dor crônica, realizada de forma crítica, reflexiva e contextualizada com a realidade dos sujeitos em dor. Esta proposta busca desenvolver conhecimentos, habilidades e valores, encorajando a reflexão do aluno em relação ao conteúdo, ao mesmo tempo que tem potencial para atender as necessidades dos sujeitos em dor e facilitar o diálogo entre alunos, professores e pesquisadores.

Dentro da perspectiva freireana de Educação Libertadora é necessário compreender a Educação como um processo de formação humana, considerando as experiências que cada pessoa traz, utilizando-as para estimular uma nova práxis educacional. (FREIRE, 1996). A participação de estudantes de graduação no projeto de extensão permite aprofundar seu conhecimento sobre uma temática específica, contextualizada com a realidade social. Além dos aprendizados teóricos e práticos adquiridos, há a oportunidade de conhecer e se relacionar com pessoas de diferentes áreas, a partir de uma prática interdisciplinar.

Além do impacto na formação do aluno de graduação, projetos de extensão são espaços de prática docente que colaboram com a formação contínua e interdisciplinar do
professor voltada para conhecimentos e formas de assistência que contribuam na resolução de problemas reais da comunidade.

De acordo com Freire, o educador deve ser democrático em sala de aula, trazendo para esse espaço a vivência das idéias nas quais acredita e a vivência do aluno fora da escola, entendendo que é através dela que se iniciam as transformações do mundo (FREIRE, 2001). Nessa perspectiva, o Projeto de Extensão “Compartilhando saberes em dor” reforça a importância da ação extensionista como espaço democrático e interdisciplinar.

A aproximação dos docentes e pesquisadores com a atividade extensionista, essencialmente prática e em parceria com profissionais de diferentes áreas, proporciona uma forma eficiente de trocar conhecimentos, experiências e de construir relações mais horizontais entre profissionais.

2.2 O território na perspectiva de Paulo Freire e a proposta da extensão em dor

Os participantes são acolhidos nos diferentes espaços de atuação do projeto. As ações desenvolvidas no projeto são diversificadas, como webconferências semanais, pela plataforma Zoom®; produção de vídeos educativos disponibilizados no canal da Escola de Enfermagem da UFMG no YouTube®; atendimentos psicológicos individuais; “Desafio de talentos”, em que os participantes são incentivados a compartilhar suas habilidades com o grupo no WhatsApp® passando a ser acompanhados longitudinalmente pela equipe através de atividades educativas e terapêuticas.

Na atividade de webconferências semanais são trabalhados aspectos conceituais e terapêuticos do cuidado em dor crônica realizadas por profissionais de enfermagem, psicologia, nutrição, fisioterapia, terapia ocupacional, medicina, artes plásticas, odontologia e direito. A proposta de intervenção interdisciplinar é fundamentada no reconhecimento de que as complexidades da dor crônica exigem uma abordagem biopsicossocial complexa e que uma abordagem biomédica tradicional não consegue abordar adequadamente todos os problemas relacionados à dor nesta população.

A produção de vídeos didáticos e sua disponibilização em uma rede de comunicação de fácil acesso, como o YouTube®, é uma atividade desenvolvida no projeto para levar conhecimento científico à população e diminuir a distância entre a realidade dos sujeitos em dor crônica e as propostas de educação em saúde. O uso de redes de comunicação a partir da produção de vídeos didáticos, educativos, e desenvolvidos com linguagem simples e acessível, considera os saberes populares, diminuindo a hierarquia entre conhecimentos acadêmico-científicos, conhecimentos técnicos e aquele oriundo dos meios populares. Esta proposta fundamenta-se no entendimento da Extensão como prática política e no entendimento de um fazer acadêmico que estimula, reconhece e valoriza a troca de conhecimentos (SANTOS; DEUS, 2014).

A aproximação entre conhecimento científico e divulgação por meio de vídeos didáticos de fácil acesso potencializam o que Germano e Kulesza (2007), definem como popularização da ciência. O conhecimento e toda ciência produzida em relação à temática da dor crônica podem ser considerados um patrimônio e, neste sentido, o Projeto de Extensão “Compartilhando saberes em dor” apresenta uma forma inovadora de difundir o conhecimento científico produzido dentro das universidades para o público em geral,
empregando diferentes linguagens, como a midiática. Nesse cenário, o Projeto de Extensão “Compartilhando saberes em dor” disponibiliza e populariza o conhecimento científico sistematizado em diferentes instâncias da academia, possibilitando a troca de saberes com a sociedade.

Outra atividade desenvolvida no projeto e divulgada por meio do aplicativo Istagram®, a produção de cartilhas informativas sobre terapias para dor crônica contribui para popularizar o acesso às informações científicas, fazendo a aproximação do público externo com a universidade.

De acordo com Andrade (1998), os espaços são transformados em territórios a partir da sua ocupação e apropriação pelo sujeito, ao tomar consciência de sua participação. Vale destacar que no projeto de extensão, o território se configura como cultural ou simbólico. A experiência grupal rompe com o isolamento que pessoas com dor crônica normalmente vivenciam; torna-se um território para aprender a lidar com a dor, utilizando o aprendizado do outro como forma de ajuda, o que aumenta a rede social de apoio. O grupo se constitui em um território educativo capaz de possibilitar a identificação e a troca de experiências, oferecer esclarecimentos; auxiliar no aprendizado da “fala”, uma vez que é frequente a dificuldade dos indivíduos em expressar sentimentos. (TAVARES et al, 2012).

Além de um território terapêutico, o grupo ainda configura-se como um espaço de acolhimento, de reconhecimento das necessidades subjetivas e coletivas dos indivíduos que sofrem dor, propondo o cuidado a partir do conceito de integralidade, com enfoque individual e coletivo.

As reflexões teóricas sobre território são amplas e possibilitam a construção de um diálogo com a educação social. O território como constituinte dos sujeitos e, portanto, como constituinte das práticas educativas é elemento a se considerar no campo da educação, especialmente na educação social. Segundo Rafesttin (1993) é no território vivido que também acontece a educação.

A educação popular no Brasil, a partir do ano de 1950, recebeu a influência de Paulo Freire na elaboração das bases da educação libertadora. Nesta proposta freireana de educação, as finalidades, os conteúdos, as ações estão articulados no intuito de promover a humanização e a libertação dos sujeitos. (MENEZES, SANTIAGO,2014.).

As ações desenvolvidas no projeto, além de potencializar as capacidades dos indivíduos, podem promover mudanças de comportamentos e atitudes direcionadas ao desenvolvimento da autonomia e ao enfrentamento da dor. O grupo tornou-se um território de acolhimento e assumiu sentidos além do terapêutico, tais como local de socialização, lazer e espaço de cuidado, como pode ser observado nas falas dos indivíduos em dor “Nesse projeto eles nos deixam bem, com bastante liberdade pra gente se expor, da forma que nós queremos nos expor, então essa humanidade, esse lado humano foi o que mais me encantou. ” (Participante 3). “Eu estou aprendendo, e ao mesmo tempo eu estou também tendo a oportunidade de transmitir os saberes que eu fui adquirindo ao longo do tempo, para os outros integrantes do grupo. ” (Participante 4)

O projeto de extensão, neste sentido, se configura como um projeto social, que propõe a libertação e emancipação dos sujeitos, estando de acordo com a proposta educacional libertadora de Paulo Freire. Neste sentido, o atendimento em grupo, aliado ao acompanhamento de profissionais de uma equipe interdisciplinar, pode se tornar uma estratégia eficaz de intervenção para indivíduos com dor crônica.

Perspectiva interdisciplinar no compartilhamento de saberes

As ações desenvolvidas no projeto visam a participação dos indivíduos que sofrem dor em atividades amplas e diversificadas, como as recreativas e de lazer. Tais atividades estão estatisticamente relacionadas com o desenvolvimento de redes de suporte social e melhora da qualidade de vida (CABRERA-LEON; CANTERO-BRAOJOS, 2018; CHA, 2018), além de estarem associadas com indicadores de saúde física e mental, satisfação com a vida, bem-estar e melhor competência social (JONGEN et al, 2017; PARK et al, 2021).

Segundo Tavares et al (2012), o processo de cuidado a partir da estratégia grupal nem sempre acontece de forma linear e de modo fácil para os participantes. Silva et al. (2011), em um estudo realizado com trabalhadores com dor crônica, evidenciaram que esta condição clínica levou a restrições sociais, perdas de papéis e impacto no trabalho. No entanto, em resposta a estas rupturas advindas com o aparecimento da doença, os indivíduos também desenvolveram estratégias, aprenderam a lidar com a dor, organizaram sua rotina diária, assim como formularam novos planos para o futuro (SILVA et al, 2011).

O grupo é um espaço terapêutico potencial para auxiliar a pessoa com dor crônica a reconstruir suas histórias de vida e dar um novo significado às repercussões da doença. Assim, o conhecimento sobre a dor crônica, o convívio com pessoas que vivenciam a mesma experiência, as atividades desenvolvidas no grupo, o aumento do senso de competência e autocuidado e, principalmente, o empoderamento do sujeito diante do seu processo de saúde pode ser potencializado pelas ações grupais, como as desenvolvidas pelo o grupo.

De acordo com o pensamento freiriano, o desenvolvimento da consciência, possibilita a ação livre e que torna o indivíduo capaz de apreender a realidade, de uma maneira crítica-reflexiva.(MENEZES, SANTIAGO,2014) Nesta perspectiva, o projeto possibilita aos alunos autonomia para identificar as necessidades humanas básicas dos sujeitos em dor, dentro de um modelo teórico, e propor medidas terapêuticas de promoção da saúde e prevenção de doenças, seguindo os propósitos fundamentais da extensão na formação humana.

Além dos aprendizados teóricos e práticos adquiridos no projeto de extensão, os educandos têm a oportunidade de conhecer e se relacionar com pessoas de diferentes áreas, a partir de uma prática interdisciplinar. (DUTRA et al, 2018) O projeto busca desenvolver conhecimentos, habilidades e valores, bem como tem potencial para facilitar o diálogo entre alunos, professores e pesquisadores.

O pensamento de Freire propõe o diálogo do educador com seus educandos; compreendendo o que é e para que serve a educação. Considera a cultura do educando, criando uma pedagogia cheia de diálogo e amor, instituindo uma vivência solidária, com relações sociais e humanas, buscando, com o educando, consciência crítica através de um processo “práxico”, respeitoso e interdisciplinar. (MIRANDA, BARROSO, 2004).

Além do impacto na formação do estudante, projetos de extensão são espaços de prática docente que colaboram com a formação contínua e interdisciplinar do professor voltada para conhecimentos e formas de assistência sustentadas no diálogo e no amor, que contribuam na resolução de problemas reais da comunidade.

Nessa perspectiva, o Projeto de Extensão “Compartilhando saberes em dor”, reforça a importância da ação extensionista para a formação continuada do docente e como um espaço de trabalho reflexivo e crítico sobre a prática pedagógica do professor. Assim, a extensão universitária permite ao trabalho do docente/pesquisador uma formação continuada mais cidadã, crítica e interdisciplinar.

Vale ressaltar que a prática extensionista atua na vida dos indivíduos envolvidos, utilizando o território como constituinte das práticas educativas. A interação entre os profissionais, discentes e os sujeitos que sofrem com dor crônica, promove um compartilhamento de saberes, autonomia do autocuidado, pensamento crítico e atendimento às necessidades biopsicossociais.

Por fim, ainda existem desafios importantes para a implementação de programas de tratamento indisciplinar para sujeitos com dor crônica. Neste sentido, este projeto pode ser um ponto de partida para estimular o desenvolvimento de serviços interdisciplinares de atenção e cuidado ao sujeito com dor crônica.

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